entre-Vistas

Friday, May 04, 2007




Manuel Jorge Marmelo


“O escritor é um vampiro: tira bocadinhos à realidade, amassa-os e cria a sua ficção, o seu mundo novo”


Por detrás de um ar de miúdo, conta já com uma vida plena em estórias. De ironia aguçada, tem uma expressão triste, mas ri-se muito das suas próprias palavras. Diz ser escritor desde sempre, embora não tenha qualquer pretensão em escrever sob focos das luzes da ribalta.
Manuel Jorge Marmelo nasceu e vive no Porto há 35 anos. É jornalista no Público desde os 18, mas nunca acreditou na santa objectividade. Estudou Filosofia, num episódio muito curto, e diz que a realidade é a melhor fonte da ficção.
Ao gritar O Silêncio de um Homem Só, em 2004, ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco. Faz parte do Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX e já o consideraram um autor de excepção. Ainda assim, não se deixa paralisar por rótulos, continuando numa busca despreocupada da sua entidade literária.
Numa singular manhã de sol na cidade nortenha, submerso na tranquilidade da casa onde se faz música, Jorge Marmelo conta o passado que traz nos bolsos e o futuro para onde o vento o leva.


“Todos [os escritores] sabem que podem fazer melhor, mas há um momento em que têm de libertar o livro.”

Diz ser escritor desde sempre...
Sim, desde que aprendi a escrever, com seis anos. Mas o processo de criação literária, a sério, começou em 1995/96, quando editei o meu primeiro livro – O Homem que julgou morrer de Amor –, que foi agora republicado. Antes disso, tinha feito umas tentativas frustradas, contos que não chegaram a lado algum.

Porquê frustradas?
Reconhecia-as como tal. Desistia a meio. Penso que não se tem maturidade para escrever um livro com 18 ou 20 anos. Prova disso é que 10 anos depois de ter editado o primeiro livro, ao editá-lo outra vez, praticamente o reescrevi. Naquela altura, consegui acabar o livro, fazer um livro que interessou a uma editora. Passados alguns anos, penso que talvez o devesse ter escrito de outra maneira. Foi o que fiz agora.

Tem que ver com perfeccionismo?
Nada. Se assim fosse, nunca teria editado nenhum livro. Reescrevia-os durante anos, de forma constante. Há um momento a partir do qual te apercebes que nunca vais chegar à perfeição. Não adianta estar estagnado e guardar o livro para mim. O meu novo romance – Aonde o Vento me Levar –, fala precisamente disso. Da impossibilidade de qualquer escritor – mesmo os mais conceituados – achar, no final da sua obra, que escreveu o livro perfeito. Todos sabem que podiam fazer melhor, mas há um momento em que têm de libertar o livro.

Não é arriscado reescrever um livro? Não é como reescrever uma parte da vida?
Não. Tenho, pelo menos, a pretensão de escrever um bocadinho melhor. Não se trata de reescrever uma parte da vida. Com a vida é pior. Trazemos o passado nos bolsos, não podemos livrar-nos dele. Assumo o que fiz. Se fosse arriscado, deixava que o livro caísse no esquecimento.

Lançou, aos 25 anos, o seu primeiro livro. A partir daí, lançou um livro por ano. Escrever é uma necessidade voraz?
Também, mas acima de tudo, essa média de livro e meio por ano resulta de ideias inesperadas. Não acho que seja tudo literatura. Tem livros de crónicas e colectâneas de coisas que escrevi no Público aí pelo meio (risos). Se for a pensar apenas nos romances e nos livros de contos – que era o que queria fazer, como plano prévio –, essa média baixa, certamente. As coisas vão surgindo sem que planeie. É um processo espontâneo, não tanto fruto dessa necessidade.

O que mudou na sua escrita, 10 anos depois?
Muita coisa. Envelheci. O envelhecimento tem também aspectos positivos. Quando escrevi o primeiro livro, era jornalista há 4/5 anos, tinha esses anos de prática de escrita diária. Neste momento, sou jornalista há 17 anos. É como no futebol – treina-se para se apurar a técnica. Na escrita também (risos).

É fruto de trabalho e não só de inspiração, portanto.
Costumo dizer que a inspiração é importante, mas só se estiveres sentado a escrever quando ela chega perto de ti.

Consegue rever-se nos seus livros mais antigos?
Sim. A realidade ultrapassa, muitas vezes, a ficção, mas nunca os sentimentos. O homem que julgou morrer de amor, por exemplo, está aí. Esteve sempre por aí. A mudança de palavras com que conto esse homem não muda o que sinto. Não renego o meu passado.

Escreve propositadamente?
O facto de manter um blog há já três anos, obriga-me a escrever textos quase todos os dias, que não sejam notícias de jornal. Muitas vezes, o que escrevo no Tatarana serve de nota para coisas que desenvolvo posteriormente. São ideias que não deixo escapar.

Para além do treino de escrita, é uma forma de aproximação com os leitores?
Sim, permite um feedback directo e experiências com a escrita. É um modo de saber se são experiências a que posso dar continuidade. Já me aconteceu escrever textos de quatro linhas sem nenhuma pretensão e as pessoas mostrarem entusiasmo por eles. Não há grandes compromissos – o texto não fica publicado, acaba por se diluir na blogosfera.

Aprecia muito a liberdade de experimentar com as palavras?
Sim, é uma busca enquanto escritor, enquanto pessoa. A única maneira de te descobrires é através da experiência.


“Sei que estou a fazer artigos que não vão mudar o mundo. Há um desencanto em relação ao jornalismo.”

Começou por ser jornalista desportivo. Como é que surgiu essa oportunidade?
Por um acaso e por muita sorte. Tinha acabado de concluir o 12º ano, quando o Público abriu o concurso para estagiários. Concorri sem qualquer experiência ou formação universitária, algo que eles requeriam. Enviei uma carta onde dizia que queria tentar, ainda assim. Chamaram-me para um teste e, após uma entrevista, fui seleccionado para tirar um curso no Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas (CENJOR). Na altura, fui um dos 20 seleccionados para ficar no Público, sendo o único disponível para ficar no Desporto. Não era o que queria fazer por toda a minha vida, tanto que só o fiz por 3 anos. Porém, foi uma porta de entrada no jornalismo.

Via o jornalismo como uma proximidade entre o mundo e a palavra?
Tinha uma visão muito romântica da profissão. A vertente da denúncia, da ajuda, aliciava-me. Hoje, sei que estou a fazer artigos que não vão mudar o mundo. Há um desencanto em relação ao jornalismo.

O jornalismo é uma obrigação?
A maior parte dos dias. Claro que há outros em que descobres histórias que te entusiasmam e que te fazem manter na profissão. Mas mais do que enfadonho, é um trabalho demasiado burocrático.

Um jornalista tem de lidar com a santa objectividade. Já o escritor é um ser totalmente subjectivo. Como convive o contista com o jornalista, dentro de si?
O jornalista faz o horário das 9 às 5, enquanto o contista pega ao serviço depois (risos). Nada é assim tão rígido, claro. O jornalista não é sempre objectivo, muitas vezes tem de ser subjectivo.

Porquê?
Porque não somos máquinas. Mesmo que tentemos ser objectivos, vai ser sempre a nossa objectividade. Tentamos ser o mais verdadeiros possível com a nossa consciência, mas tendo noção de que não há uma verdade absoluta.

Sente-se preso, na profissão de jornalista?
Não. Lido bem com as obrigações jornalísticas. Quando há factos, relato-os. Mas há sempre pontos de fuga para escapar a uma objectividade que te amordace.

Estudou Filosofia Clássica, durante dois anos. O estudo alimenta a escrita?
Sim, essa passagem quase episódica pelo curso de Filosofia foi por uma questão de auto-formação, de enriquecimento pessoal.

Porquê Filosofia?
Porque é a raiz de todos os outros conhecimentos. O meu professor de Filosofia chamava-me, inclusivamente, “O Sofista”. Dizia que eu escrevia bem, mas não estudava nada. Respondia sempre, inventando muito (risos). A Filosofia dava-me liberdade de escrita.

Disse que esse campo histórico/filosófico é de tal modo impreciso que abre caminho à especulação e à ficção. A realidade contém já uma boa dose de ficção?
Sim, a maior parte das ficções têm origem na realidade que, não raras vezes, é inverosímil. O escritor é como um vampiro: vai pela rua fora e utiliza certas características das pessoas para construir personagens ficcionadas. Tira bocadinhos à realidade, amassa-os, e cria a sua própria ficção, um mundo novo. As personagens têm muito das pessoas que conhecemos e, muitas vezes, de nós próprios.

Tem tendência para ser como o anjo Damiel – da crónica Nas Asas da Boavista – e contemplar a cidade?
Tento ser um observador razoável. Aliás, deve ser uma das características fulcrais do jornalista. Quando saio em reportagem, gosto de ir sozinho, sem câmaras ou máquinas fotográficas. Tenho uma percepção mais aproximada da realidade. A objectividade é completamente subjectiva – a realidade altera-se pelo menor número de coisas.


“Nunca se sabe se se é completamente original ou um resultado directo das leituras que se fez.”

Há tendência para rotulá-lo como “novo talento literário”.
Sim, em Portugal és novo talento até aos 40 anos... (risos) Fiquei admirado com o Público – que nunca publica nada sobre mim – porque me apelidou de “autor de excepção”.

Como lida com esses rótulos?
Tento não ligar. As pessoas sentem necessidade de classificar as outras. Eu próprio, enquanto jornalista, farto-me de rotular pessoas com “títulos” em que não se revêem.

Não o assusta ser considerado um “autor de excepção”?
Cheguei a temer que esse tipo de coisas tivesse consequências nefastas na criação literária. Por exemplo, quando a Asa me convidou para escrever Os Fantasmas de Pessoa, senti-me perdido. É quase um atrevimento escrever sobre alguém como Fernando Pessoa.

É sempre difícil revisitar Pessoa. Como conseguiu ultrapassar o medo?
Pensei que tinha de escrever uma história como as outras, esquecendo que era sobre Pessoa. Olhei para ele como um personagem, um boneco. Tentei esquecer a história fixa que existe, desligá-lo da figura histórica que ele, de facto, é.

Muitas vezes, ganhar um prémio tão importante como o Prémio Camilo Castelo Branco, como é o seu caso, também é castrador da criatividade.
Sem dúvida. Se pensasse que nunca mais iria escrever algo tão bom como O Silêncio de um Homem Só, centrar-me-ia nas expectativas que tinham sobre mim e correria o risco de nunca mais escrever nada. Comecei a escrever por gostar de escrever. Espero continuar a fazê-lo pelos mesmos motivos e não pelo que os outros dizem de mim.

Diz estar ainda a procurar-se como entidade literária. É uma procura incessante, preocupada?
Penso que não. Escrevo mais para me descobrir enquanto pessoa. Os meus livros de há 10 anos atrás mostram uma pessoa diferente, menos complexa. Sinto que ainda não cheguei ao ponto de ter criado o estilo que acho que posso e quero ter.

E que estilo é esse?
Não sei. Se soubesse, seria fácil essa procura.

Afirma não estar satisfeito com nada do que escreveu até agora. É permanente, a insatisfação?
Alguns escritores ficam satisfeitos, como o caso do [António] Lobo Antunes. Agora, quando não temos essa postura diante da vida, jamais nos sentimos satisfeitos. É natural e inerente ao ser humano. Quando chegas ao fim de um livro, sabes que venceste o desafio apenas de forma parcial.

É importante, para si, fazer diferente?
Só vale a pena se for para fazer diferente. Se for para escrever livros iguais aos outros, os outros já o fizeram. Faz parte do processo de criação. Há gente que ganha a vida a copiar os outros, mas isso não me interessa. Nem enquanto pessoa nem enquanto escritor. A tentativa de originalidade é a única forma de dar sentido à minha escrita.

Diz não saber em que estilo se insere, mas associam-no a um humor cáustico, a um pendor lúdico...
Talvez. Não consigo ser tão original como isso. Há milhões de livros no mundo e nunca iremos lê-los todos. Logo, não sei se não haverá alguém que faça algo semelhante ao que faço. Há referências que tenho e que, não tentando imitá-las, me ajudam a criar algo tributário da minha herança cultural. Acho que nunca se sabe se se é completamente original ou um resultado directo das leituras que se fez.

Que referências são essas?
Autores por onde comecei a minha busca enquanto leitor. [Gabriel] García Márquez, [Manuel Vázquez] Montalbán, [Enrique] Vila-Matas, Rubem Fonseca... E essa busca é contínua. Ainda o ano passado, descobri um livro que já devia ter lido há muitos anos atrás: Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa. É uma abordagem da língua completamente diferente daquilo a que estamos habituados. É impossível ler esse livro e continuar a escrever da mesma maneira.

Como é que lida com as eventuais comparações?
Desde que me comparem com autores de que gosto, lido bem com a situação. As comparações são como os rótulos: as pessoas precisam delas como um apoio, como uma referência para aquilo que vão ler.

É um escritor discreto, afastado das altas-luzes. É uma atitude propositada?
A ser verdade, tem algumas explicações possíveis. Primeiro, não estou em Lisboa, o que limita bastante o acesso aos meios de comunicação social. Depois, tenho uma vida que não me deixa muito espaço para participar em conversas, encontros ou programas. Não tenho tempo para andar em festas, digamos assim (risos).

Francisco José Viegas diz que o Jorge é um narrador subestimado. Concorda?
Não. Para tal, teria de ter algum tipo de pretensão com aquilo que faço. Toda a gente gosta de ver o seu trabalho reconhecido, mas não me custa nada admitir que sou pior do que outros. Normalmente, faço apresentações dos meus livros com 4 ou 5 pessoas de ar muito aborrecido (risos).

Em Portugal, a literatura apelidada de light está no topo das vendas. Acha que há tendência para um facilitismo de compreensão literária?
Não. O Gonçalo M. Tavares, o José Luís Peixoto ou o Pedro Rosa Mendes não têm livros de leitura fácil e também são reconhecidos. São pessoas diferentes que abordam assuntos iguais de maneira distinta.

Como vê essa literatura light?
Vejo como algo que não me interessa. Mas entendo que haja quem goste e penso, inclusivamente, que pode transformar muitas pessoas em leitores. A partir do momento em que lêem um desses livros, podem querer ler mais e melhor. Daqui a alguns anos, podem mesmo estar a ler livros decentes (risos).



“Portugal é assim por nossa própria culpa. Os habitantes traem-se a eles próprios.”

Em várias crónicas, fala da vontade de se divorciar de Portugal. Mantém essa vontade?
Se não tivesse filhos, já teria emigrado. A cada ano que passa, dizem-nos que o país está pior, dizem-nos para pagar mais impostos sem que se saiba muito bem para quê. Chateia, ao fim de um tempo. Pedem-nos sacrifícios, mas não vemos recompensas. Portugal é um país com demasiados aspectos mesquinhos e atrasados.

Há uma espécie de traição do país para com os seus habitantes?
Os habitantes traem-se a eles próprios. O país é assim por nossa própria culpa. Por minha, também.

Que meios usa para levantar a voz?
Antes de mais, voto. Jamais me abstive. Mesmo sabendo que, no final, ganham os mesmos, levanto-me. Uso também o papel de jornalista – em artigos de opinião –, para denunciar algumas realidades. Mas apercebo-me, cada vez mais, de que falo para quem tem a mesma opinião que eu. Uma vez, abordaram-me numa Feira do Livro no Porto, dizendo que gostavam muito do que escrevia, excepto o que dizia contra o Presidente da Câmara do Porto. As pessoas têm uma ideia feita sobre as coisas. Não é por lerem o Jorge Marmelo que vão mudar de opinião.

Há uma espécie de conformismo na atitude das pessoas?
Sim. Acho que se adoptou, em relação a tudo, uma posição semelhante à que temos relativamente ao nosso clube de futebol. Uma relação sentimental, de fidelidade inabalável.

A cidade do Porto é personagem frequente nos seus livros. É uma cidade irrepetível?
Sim, é uma cidade que guarda muitas estórias. Mas não gosto do Porto de forma racional. Lá está, é uma relação sentimental. Nasci e sempre vivi aqui. Gosto dos dias de sol no Porto, gosto de passear nas ruas da cidade. Talvez se consiga fazer isto em todas as cidades, mas eu fiz no Porto. Escolhi um recanto e fiquei a observar a cidade a acontecer à minha frente, à minha volta. Provavelmente, em qualquer outro sítio seria igualmente encantador e sugestivo.

José Mário Silva disse, relativamente ao livro a que se refere – Porto: Orgulho e Ressentimento –, que transformou a cidade em literatura. Acha que a literatura também transforma a cidade?
Completamente. É um pouco como a personagem do meu novo romance que não entra em Maputo por não querer estragar a imagem que tem da cidade, dada pela literatura. As cidades não têm que existir tal como nós as conhecemos. Se formos a Barcelona, podemos não encontrar a Barcelona do Montalbán. Podemos reinventar uma cidade através da literatura, conferir-lhe facetas que na verdade não tem.

Como se o mundo fosse um texto por moldar?
Isso mesmo. As palavras são sempre uma mediação, nunca o espelho da realidade.

O livro Oito Cidades e Uma Carta de Amor é feito de contos ilustrados por imagens. A palavra ilustra a imagem?
As imagens podem ser ponto de partida, como bloco de notas para as histórias que criei de seguida. Acontece-me, frequentemente, uma fotografia sugerir-me coisas. Há um ano e tal que publico na revista O Tripeiro, na secção Fotonovela, contos suscitados por fotografias. No meu novo romance, todas as imagens de África são feitas por palavras inspiradas em fotografias que vi.



“Chego à conclusão de que há muito para descobrir, mas que essa descoberta vai ser um pouco dolorosa.”

Escreve muito por detrás do olhar de um homem sofrido. Exemplo disso é o conto O Silêncio de um Homem Só. Escrever é uma forma de gritar os silêncios?
Escrever é mais uma forma de preencher a solidão, o vazio. Mas não acho que escreva sobre coisas más. De coisas más está a vida cheia.


Com que livros tem partilhado a mesma sala?
Tenho tendência por ser fiel a um grupo restrito de autores. São as minhas companhias. De momento, estou a ler o próximo livro da Patrícia Melo – Mundo Perdido.

Citou, no blog, Máiquel, um personagem desse Mundo Perdido de Patrícia Melo, quando este diz: "Esse é o meu problema, o início das coisas. (...) Prefiro não tomar decisões. Prefiro esperar. Empurrar com a barriga.” Prefere a iniciativa ou o empurrão?
Tenho a tendência de ir empurrando com a barriga, ao invés de resolver as coisas. Acabamos por passar os dias sem fazer nada do que devíamos estar a fazer. Isto aborrece-me muito.

É sinal de desistência?
Aos 35 anos, sim, começo a desistir antes de começar. Chego à conclusão de que há muito para descobrir, mas que essa descoberta vai ser um pouco dolorosa.
Digo estas coisas como digo que O Amor é para os Parvos e, no entanto, os erros voltam a ser cometidos. Mas quando se tem 35 anos já não os podes corrigir.

Acha que o mundo devia vir com manual de instruções, como as suas mulheres?
Sim, nesse aspecto concordo totalmente com o senhor Madureira (protagonista do livro As Mulheres deviam vir com Livro de Instruções) (risos).


Entre-Vista: Marta Poiares
Foto: JoãoLuc

Thursday, December 07, 2006


Rita Carmo

"A fotografia vive das entidades que retrata"

Não se vê como fotojornalista, mas capta igualmente momentos únicos. Ligada ao universo musical, Rita Carmo, 36 anos, é o rosto por detrás da objectiva que junta artistas tão diversos desde o rock até ao fado. Colaboradora do Blitz há 14 anos, editou em 2003 o álbum fotográfico Altas-Luzes, onde reúne cerca de 200 imagens de uma “constelação” de figuras da banda sonora do nosso dia-a-dia. Do livro, surgiu uma exposição homónima, com direito a digressão pelo país. Com passagem por Coimbra, durante o mês de Novembro, preencheu as paredes do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), com cores, refrões e olhares curiosos.

O que te fez escolher a arte fotográfica entre tantas outras artes?
Não escolhi, foi por mero acaso. Estava a tirar um curso na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, e convidaram-me para fotografar no Blitz. Já fotografava por brincadeira, mas foi assim que comecei a fotografar como profissional. Não foi uma escolha, aconteceu. Nem pensei, na altura, que viesse a ser uma profissão a sério.

O que é que te atrai nessa arte?
O facto de não depender de outras pessoas, nem de meios complicados para fazer e acabar o produto – a concretização está nas minhas mãos. Gosto de lidar com pessoas. Aliás, fotografo apenas pessoas. É importante também a coerência estética, para além da parte da informação necessária e inerente ao factor jornalismo. Daí não me ver como fotojornalista.

És independente por natureza?
Sim. Sou dependente das pessoas de quem gosto, apenas.

Começaste por fotografar Moda. Como se deu a transição para o meio musical?
Nunca fui fotógrafa de Moda. Começou, porque estava fazer um curso de Moda. Nunca com a intenção de fazer roupa, mas de ser ilustradora ou algo ligado à área, como a fotografia. Mas fui logo para a música! (risos)

Porquê? A música era um meio mais completo?
A Moda tem um circuito muito fechado e específico, já tem as pessoas necessárias para funcionar. Há bons fotógrafos de Moda, em Portugal. Nunca me arriscaria a enveredar por essa área, porque não acho que fosse trazer nada de excepcional. O meu interesse pela Moda era relativo ao tecido, à matéria, e não ao seu meio envolvente. Gosto de ver a Moda e percebê-la, mas o meio em que se insere – em termos sociais e económicos – não me interessa muito.

Pensas que o jornalismo musical é ainda visto como um jornalismo menor?
É um jornalismo à parte. Noto que os meus colegas – tanto do escrito como da fotografia – trabalham nas várias áreas. A música, para eles, ou é um divertimento ou é uma grande chatice. Não é menor, apenas diferente. Tem uma mecânica muito específica.

O que fotografas mais, para além da música?
Nada. (risos) Mas a música não são só concertos. Fotografo o “espectáculo” – dança, performances, teatro...


“A pessoa é já uma estrela que faz a fotografia”


Vês a fotografia como um ser individual ou como objecto que precisa de um protagonista?

Claro. A fotografia é a forma que encontramos de apresentar uma realidade. No meu caso, é raro fotografar pessoas anónimas. Acho que a fotografia vive das entidades que retrata. A pessoa é já uma estrela que faz a fotografia.


Uma fotografia para ser uma boa fotografia depende de quê?

Fugindo do contexto do fotojornalismo, para mim, uma boa fotografia não é inerente àquilo a que se está a mostrar. Acontece-me, diariamente, deitar fora fotografias que não estão tecnicamente bem. Se não, vou arrepender-me mais tarde. Portanto, para mim, é a soma desse conjunto de factores. Não é pelo fulano estar a fazer uma coisa extraordinária – mesmo que tecnicamente esteja tudo mal, esteja desfocado -, que eu não vou aproveitar.


Que elementos relevas na fotografia em si?
Para mim, o enquadramento é muito importante. Aliás, é raro fazer reenquadramentos daquilo que faço, mesmo quando trabalhava em slide. Com o digital, as coisas tornam-se até mais vulgares – é mais fácil uma pessoa tirar a foto e apagá-la. Penso que a iluminação, o fundo, a posição, a expressão da pessoa são muito importantes. A fotografia é um conjunto de várias coisas, não é apenas um retratado, nem apenas um enquadramento.

Preferes o formato analógico ou o digital?

Isso é uma escolha difícil. Eu diria as duas, para situações diferentes. Pela facilidade e porque está, de facto, a evoluir para uma boa parte técnica, escolheria o digital, talvez.

O preto e branco versus cores. Qual a tua escolha?
A escolha, muitas vezes, foi feita porque o Blitz, inicialmente, trabalhava a fotografia a preto e branco. Aí não havia escolha. Depois, comecei a trabalhar em slide e gostei do trabalho a cores. Foi uma boa aprendizagem com o slide, pois é muito exigente. Actualmente, com a facilidade do digital, penso que ficaria melhor a preto e branco. Para não ficar tão carnal, tão realista, posso optar pelo preto e branco. Até elementos como a idade ou a roupa dos artistas são tidos em conta para fazer essa escolha.

Sabemos que gostas de tirar fotos a preto e branco à tua família...
Lá está, o preto e branco transforma a foto numa coisa mais abstracta, em que não somos tanto nós. Gosto de fotografar o pessoal lá de casa dessa forma.

Dizes que tratar as fotografias é uma boa opção. Porquê?
Desde que não se abuse, tratar as fotografias faz parte do trabalho do fotógrafo. Essa é uma das partes boas do digital: não deixar nas mãos das outras pessoas um tratamento que, por vezes, é necessário. Refiro-me a um tratamento de cores – na escolha de um tratamento de cor, também se pode estar a dar um significado diferente à fotografia. Saturá-la mais ou menos. Portanto, misturo as duas coisas. Sei o efeito que a fotografia tem graficamente e a necessidade de uma boa fotografia, em determinadas fases da paginação.


“É arriscado editar livros em Portugal”

Relativamente ao teu livro, Raquel Pinheiro disse que se tratava de “uma obra arriscada, mas plenamente justificada, tendo em conta esta edição livreira dedicada à música em Portugal”. Concordas?
Acho que é arriscado editar livros em Portugal. Geralmente, numa livraria, apenas encontras o que está a ser editado no momento – tanto que, hoje em dia, dificilmente encontras o meu livro à venda. É um risco, pois os livros para nós, portugueses, são caros. No caso de um livro de fotografia, com a quantidade de páginas que tem, é um risco ainda maior. É um objecto caro de produzir. Creio que tive alguma sorte no meio disto tudo.

Trabalhas no Blitz desde 1992. Como vês as publicações culturais em Portugal?
Em termos de edições culturais, há edições lindíssimas e muito bem redigidas. Contudo, acabam por ser edições de luxo. Fez-me alguma impressão ter visto, ao longo destes anos, o declínio das publicações em geral. Houve muitas publicações que abriram e acabaram, de imediato. Nunca pensei que fosse, precisamente, o Blitz o sobrevivente e que crescesse como cresceu. Entristece-me que isto aconteça. Não sei se está ligado ao declínio da área da música em si. É grave não haver uma concorrência mais aberta.


Afirmas que és “um bocado teimosa” e que “não te cansas de lutar para que a imagem tenha a mesma força do texto”. Na tua exposição no TAGV, as fotografias não têm texto. A palavra perde a importância perante a imagem?
Não. Neste caso, foi uma casualidade, pois estas fotografias têm texto. Foram retiradas do livro que editei – Altas-Luzes –, onde há textos. Quem os fez foi o Miguel Cadete, que resolveu, por sua opção – e eu dei-lhe carta branca para ele optar como quisesse –, colocar artistas com texto e outros não. Na exposição, porém, seria estranho que, de quarenta fotografias, três ou quatro não tivessem texto. Poder-se-ia pensar que se tratava de uma gralha ou que as legendas teriam caído, o que não era o caso.


O livro tem cerca de 200 imagens. Na exposição, são 35. Como procedeste à selecção?
A selecção foi feita por gosto, em conjunto com o Miguel Cadete. Muitas fotografias do livro que estão na exposição nem foram escolhidas por serem boas, mas sim porque se trata de um artista importante. No livro, porém, a escolha prendeu-se, não só com a parte estética, como também pela parte de poder ilustrar a música. Na exposição, isso não faria muito sentido, visto que tentei ser mais equilibrada entre retratos, concertos, artistas portugueses e estrangeiros, de forma a não deixar ninguém mal. Além disso, tratou-se também de uma questão estética, através de uma escolha minha, pessoal.



“Nem sempre os fotografados são os melhores críticos”

Sabemos que és uma grande fã dos Radiohead, por exemplo... Tentas conjugar os teus gostos musicais com os concertos a que vais, em trabalho?
Aqueles de que gosto vou, e aos que não gosto, também (risos). Não costumo fazer escolhas. Tenho pena quando falho concertos de que gosto. Embora, se a Madonna tivesse vindo cá e eu não tivesse podido fotografá-la, ficaria, igualmente, triste. Porém, fui, não gostando especificamente da música. Admiro-a como artista. Muitas vezes, nem tem a ver com a música que eles fazem, mas com os artistas em si, porque são muito fotografáveis, muito fotogénicos. Como exemplo, a fotografia dos Slipknot não foi feita em serviço. Fui fotografá-los por minha auto-recriação. Curiosamente, dos artistas de que mais gosto, em termos musicais, nem todos são muito fotogénicos.

Fotografas artistas de diversos estilos. Captados pela mesma lente, essa diversidade une-se?
Precisamente. Tento que a união da diversidade seja o que eles fazem: a música. Por exemplo, Moonspell e Sérgio Godinho não têm comparação. No entanto, respeito-os da mesma forma, no sentido em que ambos fazem arte. Quando os reúno no meu trabalho, espero conseguir isso mesmo. É um desafio.

Como costumas proceder nas sessões fotográficas? Contactas com os artistas para poderes ter um conhecimento mais aprofundado?

Não é muito habitual um fotojornalista combinar o que quer que seja com o artista. Normalmente, acompanha o jornalista e faz as fotografias de circunstância. Comecei a achar que os músicos, como não são oradores por excelência, não deveriam ser fotografados a conversar. Daí, a partir de uma certa altura, ter começado fazer retratos. Assisto à entrevista, mas não faço fotografias em simultâneo. Como já estou nisto há um tempo considerável, chego a ser o elo de ligação entre artistas e jornalistas. Com os artistas portugueses, explico o que quero fazer, por vezes... Outras vezes não, é tudo mais espontâneo. Conheço-os através dos discos e tento perceber o que estão a fazer de diferente. Até porque já fotografei alguns várias vezes. Inclusivamente, tenho agora um novo projecto – na Blitz – que implica produções de maior dimensão.

Costumas partilhar as tuas fotos com as estrelas e receber o feedback delas?
Com os estrangeiros, não. É raro esse contacto. Por acaso, acontece, de vez em quando, levar comigo o Altas Luzes, quando vou fotografar algum artista. Ao autografarem, alguns artistas deixam lá as suas impressões sobre as fotografias. Penso, muito sinceramente, que nem sempre os fotografados são os melhores críticos, porque não têm distanciamento para apreciar. Claro que gosto de saber que o livro já passou por vários artistas e que eles gostaram do resultado.


“Não tenho consciência se fiz uma fotografia publicável ou não”

O Blitz passou a ter uma periodicidade mensal, em formato de revista. Continuas a trabalhar unicamente para lá?

Não, agora já não. Por razões económicas, trabalho para o novo projecto que referi há pouco, que se vai alongar por dois anos. Além disso, tenho fotografado artistas para trabalhos deles, quer seja para cd’s, dvd’s ou promoção.

Em Junho de 2005, a convite da Alcatel Portugal e da Número, participaste no 4º Festival International des Arts et Culture Portugaise em Paris. Como surgiu a colaboração com a Alcatel?
A minha colaboração com a Alcatel começou por um acaso. O Blitz propôs um calendário a patrocinadores e eu, que na altura estava a tratar de detalhes gráficos no Blitz, propus à Alcatel um novo calendário de artistas portugueses. A Alcatel tem uma relação estreita com a música e acarinha imenso os músicos portugueses, logo gostou da ideia. Juntei fotografias que já tinha feito nesse ano e outras que fiz especificamente para este fim. Eles gostaram e propuseram expor essas fotografias nesse Festival.

Mantém-se, a colaboração?
Sim. A partir daí, formou-se uma ligação muito estreita com a Alcatel. Proponho-lhes projectos, eles gostam e apoiam-me, como é o caso da secção que está na revista Blitz.

Sendo fotógrafa, captas momentos únicos. Sentes, naquele instante, essa unicidade?
Não. Agora, com o digital, é mais fácil ter a consciência do que faço, porque a concretização da imagem é imediata. Quando faço sessões fotográficas, é diferente. O resultado estará perto daquilo que imaginei previamente. Num concerto, não é assim tão linear. Não tenho consciência se fiz uma fotografia publicável ou não.

Entre-Vista: Ana Beatriz Rodrigues e Marta Poiares
Foto: Tool, Pavilhão Atlântico - por Rita Carmo

Thursday, October 05, 2006


José Luís Peixoto

"Sou de certeza uma pessoa que não sabe quem é."

Rodeado de palavras em forma de livro ou musicadas, José Luís Peixoto fala como se recitasse um dos seus poemas. A voz é calma, o olhar é sereno e pestaneja alguma melancolia. No fumo dos cigarros que saboreia consecutivamente, caminha a simplicidade que o distingue entre muitos. Tem um riso silencioso que faz esquecer, por longos momentos, a tarde escura que espreita por entre as cortinas da sala onde escreve.
Tem 31 anos, vários piercings e algumas tatuagens, mas não se considera irreverente. Escreve muito e quando não o está a fazer, pensa nisso.
Sentado num sofá vermelho-sangue, trágico como dizem ser a sua escrita, passeia pela tentativa de saber quem é. Diz não ter todas as respostas do mundo, mas tem o conhecimento na ponta dos dedos e, quando fala, descobre o que se esconde atrás da vida.

Está a escrever um novo romance, Cemitério de Pianos. Com que linhas o escreve?
Não gosto de falar dos romances em que estou a trabalhar, sobretudo quando ainda não estão concluídos. Estou à beira de terminá-lo, mas não quero adiantar nada acerca das linhas do romance. Podem surgir alterações e qualquer coisa que dissesse agora iria criar uma expectativa que depois não seria confirmada.

Tem a ver com alguma espécie de superstição?
Também. Vou criando, constantemente, novas superstições. Há algumas passageiras, mas muito importantes, porque determinam a minha vida e a minha maneira de escrever.

Não o limitam?
Sim, mas não é uma angústia muito grande. Relativizo um bocado o lugar dessas superstições. Não vivo nem escrevo em função delas. No entanto, há dois números que evito: o 11 e o 13. Quando chego às páginas com esses números, custa-me um pouco mais avançar.

Tem algum método de escrita?
O meu método é escrever sempre. Quando não estou a escrever, estou a pensar nisso.

Que peso tem a inspiração?
Inspiração? Não sei muito bem o que isso é. Essa “voz” que às vezes diz coisas também deve ser ouvida. Se alguma coisa me surge mais por intuição do que por raciocínio, escrevo-a imediatamente e só depois é que páro para pensar e avaliar. Mas quem não está disposto a trabalhar muito, nunca poderá escrever um texto como um romance – escrever um romance é trabalhar, muitas vezes, contra a nossa vontade. É transpirar.

A poesia é mais espontânea?
Sim, não conseguiria marcar uma hora para me sentar e escrevê-la. Surge-me um primeiro verso que vou desenvolvendo progressivamente ou que associo a um conceito. Mas na poesia também é essencial reler muitas vezes e distanciar-se dela o suficiente para conseguir avaliá-la.

Escreve mais de dia ou de noite?
Escrevo mais de noite, porque é muito mais calma. Também escrevo de dia, desde que tenha tempo e disponibilidade mental.

Prefere o silêncio ao burburinho...
Completamente. O silêncio ou a minha própria banda-sonora.

Banda-sonora?
Sim, pode ser qualquer coisa, desde que seja o que a escrita me sugira ouvir. Cada livro meu tem uma série de músicas ou intérpretes relacionados, como se fosse um filme.

O que procurava quando escreveu pela primeira vez?
Não sei. Sei que queria experimentar dizer coisas que nunca tinha visto ditas.

Não era como um refúgio?
Um bocadinho, mas não apenas isso. Era um interesse pela experiência com palavras. Quando se tem 16 anos, nunca se consegue deixar de reflectir sobre certas questões, não é? Se não fosse algo que não tivesse um cariz marcadamente pessoal, não me interessaria muito.

O que procura, agora?
Continuo a não saber. Os Sex Pistols cantam: “Don’t know what I want, but I know how to get it.” É isso que sinto. As palavras que encontro para mostrar o que quero são tão vagas, que duvido que signifiquem alguma coisa.


“Para me manter a viver da escrita, tenho de escrever muitas coisas que não escreveria naturalmente”

Era professor de Inglês. Abandonou o ensino para se dedicar à escrita. Como foi esse processo?
Quando comecei a pensar o que gostava de fazer na vida, queria ensinar. E, de facto, ser professor não me decepcionou. Sempre me agradou muito a imprevisibilidade das aulas, não existir um horário preenchido de forma monótona. No entanto, embora a escrita seja uma actividade pouco estável, dar aulas também o é. Às vezes, penso se terei feito a melhor escolha, porque para me manter a viver da escrita, tenho de escrever muitas coisas que não escreveria naturalmente. Algumas surpreendem-me no final, mas outras roubam-me tempo e gastam-me.

Escrever é uma forma de ensinar?
Sim, mas é, de certeza, uma forma de aprender. A minha maior ambição é conseguir aprender e esperar que os outros também o queiram fazer.

Uma vez disse que os bons romances acrescentam sempre algo à vida do leitor. Acha que os seus romances o conseguiram?
Espero que sim, porque à minha própria vida acrescentaram muito. Só por essa razão é que tenho a ambição de publicá-los. Se não se acreditar naquilo que se escreve, é muito difícil ultrapassar todas as barreiras que se colocam no caminho de quem pretende publicar.

E que romances ou escritores completaram fases da sua vida?
O primeiro romance que li foi “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes. Marcou-me imenso, não só porque chorei muito a lê-lo, como por ter lido o livro até ao fim. Foi um grande feito. Com 16 anos, comecei a ler Florbela Espanca, que ainda hoje releio. Li primeiro os Sonetos e, à maneira dela, escrevi um caderno com 60 ou 70 sonetos meus. Depois, de uma forma quase auto-didacta, comecei a ler vários autores, como Ruy Belo, Herberto Hélder ou Nuno Júdice, tentando encontrar referências. Nessa altura, comecei a ler mais poesia e a escrever, também. Com 17/18 anos, descobri Fernando Pessoa – essencial para mim –, e António Lobo Antunes, algo de transcendente, que me levou a escrever prosa. Na faculdade, encontrei William Faulkner, autor que (re)leio sempre. Todos estes autores têm uma importância vincada na minha vida. Hoje em dia é difícil encontrar autores que causem o impacto que estes causaram, nessas fases.

Lê vários livros ao mesmo tempo?
Leio. Podem ser de várias áreas e várias línguas. Gosto de ler em línguas que não compreendo, porque preencho os espaços com o que imagino que seja.

A palavra é uma companhia?
Sim, mas é mais uma forma de esquizofrenia porque, a partir de certo ponto, torna-se uma entidade verdadeira. É uma estranha forma de vida viver da palavra. No fundo está a vender-se aos outros algo de íntimo e privado.

Acha que, entre os seus livros, há muitos pontos de contacto?
Sim, e muitos deles são intencionais. Tenho uma certa dificuldade em prever os próximos livros e em escrever hoje de acordo com o que irei escrever amanhã. Mas não consigo escrever hoje, ignorando aquilo que escrevi ontem. A minha forma de escrever tenta ser paralela a mim próprio.

Em que é que se aproximam, os livros?
No estilo de escrita. As repetições, por exemplo, são constantes, apesar de não programadas. Também há uma vocação para desfechos trágicos, ambientes de maravilhoso, de fantástico, de milagre. Mas são coisas que estou pronto a ultrapassar. Mesmo as coisas mais essenciais, ponho-as em causa, seja na escrita ou não.

“É curioso, estarem sempre a perguntarem-me coisas. Não tenho muitas respostas”

Dá importância ao feedback dos leitores?
É fundamental, mas não posso escrever para tentar agradar aos outros. Esse é o maior erro. Se essa tentação me surge, esforço-me bastante para afastá-la. No entanto, seria mentir a mim próprio se escrevesse sem a ideia dos “outros” não estar lá.

Já lhe fizeram alguma pergunta constrangedora?
Muitas. É um aspecto curioso, estarem sempre a perguntarem-me coisas. Não tenho muitas respostas. Quando as perguntas são constrangedoras, não respondo. Nas entrevistas para revistas ditas sociais, ao contrário do que se pensa, fazem-me as perguntas menos constrangedoras. Nesse tipo de publicações cria-se uma ficção. Existe nelas um guião pré-estabelecido, em que existem duas ou três alternativas e não um mundo todo de respostas.

Quando foi solicitado por essas revistas, hesitou?
Não. Tenho uma regra pessoal – quando surge um convite para alguma coisa que nunca imaginei fazer, e que dificilmente a vida me trará de novo, aceito. Segundo esse lema, já fiz as coisas mais inesperadas. Acho importante dar entrevistas, seja a quem for, na esperança que possam criar alguma curiosidade sobre aquilo que escrevo.

Roland Barthes fala da morte do autor no leitor, relacionando-a com a liberdade interpretativa. Essa liberdade, quando dirigida aos seus livros, incomoda-o?
Não, é aquilo que mais procuro. A minha tentativa não é procurar uma coisa que diga o mesmo a todas as pessoas. É quase uma alquimia – encontrar palavras que sejam substâncias e que, somadas a qualquer pessoa, lhe dêem as ferramentas necessárias para ela própria construir o que quer que seja.

Os seus livros foram traduzidos em dezenas de línguas diferentes. Não acha que o português tem outro encanto, nos seus textos?
Não sei. O português é a única língua que entendo sem esforço, em que não se impõem filtros. É uma relação natural. Muitas vezes não há uma distanciação suficiente relativamente a ela, porque está como que por debaixo da pele. Não me incomodam as traduções – é o texto a diluir-se no mundo.

Após ter ganho o Prémio José Saramago, as expectativas aumentaram. Sentiu maior pressão sobre a escrita?
Senti, mas faço muito para essas expectativas aumentarem, porque as minhas ambições também aumentaram. Por vezes, são difíceis de gerir, podendo até ser castradoras. Tenho de regressar ao que era essencial quando comecei a escrever, ao tempo livre de pressões, e avançar.

Quando tem bloqueios de escritor, que armas usa para avançar?
Escrevo. Quando as coisas se desorganizam, quando nos sentimos incapazes, temos de ir avançando a pouco e pouco e alegrarmo-nos com esses pequenos sucessos. São estes que trazem a confiança, a vontade de continuar.

Saramago definiu-o como sendo “o continuador dos escritores”. Que significado lhe atribui?
É exactamente o que pretendo – não ser uma ruptura com nada do que já foi feito antes. Nunca me sugeri como algo que não tivesse raízes em lado nenhum.


“O amor, quando é pleno, é como vida em oposição à sobrevivência”

Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell considerou-o “aquele que vive e sobrevive ao estilo de morte sulista”. Sente medo da morte?
Cada vez menos. O que me incomoda na morte é deixar aqueles que são importantes para mim, não é desaparecer.

Acha que se vive ou vai-se sobrevivendo?
São duas possibilidades. Faço tudo para viver plenamente, não quero apenas sobreviver. Por vezes, não tenho capacidade para conseguir mais do que sobreviver.

O medo de viver… É esse o veneno para o qual escreveu o “Antídoto”?
Sim, os nossos próprios medos.

Qual é o antídoto?
A amizade que, por si só, faz parte de algo maior: o amor. Quando é pleno, é como vida em oposição à sobrevivência. É a coragem mais absoluta.

Acredita numa vida depois da morte?
Não. Acredito que continuamos vivos naquilo que deixamos feito.

Disse que, noutra vida, gostaria de ser uma árvore feliz. Por quê uma árvore, se é algo que está estático?
Muitas vezes, todo o movimento que temos é ilusório. De facto, gosto muito de viajar. Mas aquilo que se aprende andando pelo mundo não é muito diferente do que se aprende passando uma vida num só lugar. Uma árvore, além de estar estática, também é firme, segura. Tem mais possibilidades de felicidade. Tem os filhos por perto que, por sua vez, crescem perto dos pais.
Quando escolhi a fotografia da capa do “Morreste-me”, dei preferência à que retratava duas árvores. Pensei que pudessem ser como um filho e um pai, em que as duas copas e as raízes se tocassem.

Escrever o “Morreste-me” – que vê a morte paternal de tão perto – foi como repisar a dor ou teve uma função catártica?
Foi algo de muito importante. Quando se escreve alguma coisa, tem necessariamente de se organizar e gerir. E, assim, foi uma forma de organizar e gerir sentimentos ligados à morte do meu pai.

Após a morte do seu pai, passou a viver rodeado de figuras femininas. É algo sempre presente em si e na sua escrita?
Sim. Por acaso, uma das perguntas que me custa mais ouvir, é quando alguém me questiona por que trato tão mal as mulheres nos meus livros, envolvendo, por vezes, acusações de misoginia. O que acontece é exactamente o contrário – mostrar uma pequena dimensão do quão maltratadas são as mulheres, para que não se finja que não são. É fundamental escrever sobre mulheres.

O amor é mesmo “ter medo e querer morrer”, como escreveu em “Criança em Ruínas”?
Não, essa é apenas uma possibilidade. Não sei definir o amor, mas penso que quantas mais respostas dermos, em relação ao que é o amor, mais perto nos situamos desse conceito final.

“Sou muitos contrários num só”

Uma vez disse que a ingenuidade era a sua maior extravagância.
Acho que se pode optar entre ingenuidade versus cinismo. Muitas vezes fala-se da maldição do conhecimento. Para mim, ser inteligente é ser feliz. Muitas vezes, a felicidade pode encontrar-se na ingenuidade, encarando esta última como bondade.

Acha que é um ser pessimista?
Não. As minhas histórias têm fins, mas não são necessariamente sinal de pessimismo. O fim das pessoas é a morte e não o “foram felizes para sempre”. Isso é uma suspensão no tempo, de uma irrealidade. Mais impossível que qualquer coisa é ser feliz para sempre.

Diz que “uma lágrima é morrer tão completamente”. Chora muitas vezes?
Já chorei muitas vezes. É bom chorar. Se estiver muito triste, não choro, não como, não faço nada. Chorar é reagir.

Tem algumas tatuagens. É uma forma de eternizar momentos?
Sim, não tenho qualquer pudor em relação às tatuagens e à eternidade que lhes é intrínseca. Não me arrependo de as ter feito. São como cicatrizes.

Acha que a sua aparência é uma forma de irreverência?
Não. Piercings e tatuagens para mim são uma coisa bastante individual. São como uma extensão do corpo – torna-se um bocadinho maior e diferente ao toque, fica muito mais sensível. Às vezes, achava que se alguém me tratava mal, era devido à minha aparência. Hoje em dia, já não penso assim, acho simplesmente que a pessoa é idiota.

Considera-se um artista?
Sim, muito. Gosto de cruzar diversas artes e, também, de trabalhar com outras pessoas, partilhar responsabilidades. Na escrita não tenho muita oportunidade de fazer isso, é uma experiência mais solitária.

Quem é, então, José Luís Peixoto?
Não faço a mínima ideia. Sou muitos contrários num só. Não tenho grande pudor de procurar hoje uma situação e de amanhã procurar exactamente o oposto. Aquilo que faço, ao escrever, é sempre procurar definir-me e saber mais de mim próprio. Sempre. Mas quando chego a alguma conclusão, esqueço-me ou mudo. Existem tantas perspectivas para me olhar! Existe um interior tão cheio de túneis e escuridão por eliminar que, por vezes, perco-me. Sou de certeza uma pessoa que não sabe quem é.

Entre-Vista: Marta Poiares
Foto: D.R.